sábado, 28 de abril de 2012

Lucidez


Ruben Moreno - Four Dimensions of Mindfullness


Lucy nunca se soube no mundo dos homens. Deitava-se no chão e cobria as estrelas com os dedos. Nunca piscava, tinha medo de não querer mais abrir os olhos. Visitava sempre o mesmo céu noturno, apresentava-se a cada vez. Jovem nunca fora desde que nasceu, a não ser, talvez, pela tez virgem que a vestia, pela voz suave que só os poetas ouviam, por suas mãos viçosas, pelos olhos pueris de desarmar o tempo... E pelo próprio tempo que não tinha. Também não era velha, a não ser, talvez, pelo andar digno de quem desenha o mundo, pelo saber que só os poetas sabiam e por esses mesmos olhos que pintavam as cores dos astros. Ria-se dos pensamentos que lhe pipocavam a mente: queria ser flor de vinte dias, o cometa Halley, um pingo da chuva, um sorvete de chocolate com baunilha, um símbolo indígena, Ártemis, um gato de Louis Wain...

Não sabia em quais mentiras acreditar. Para Lucy, a rosa dos ventos não apontava direções, por isso seguia pelo caminho em que suas pernas andavam. Amanhecer era um milagre todos os dias. Tudo era um milagre. Passava pelas janelas das casas das pessoas e acenava para tudo o que lá havia. Tudo acenava de volta, exceto as pessoas. Sacudia os ombros quando ria, e ria muito disso. Caminhava de mãos dadas às incertezas do próximo passo. Sempre dizia que não existia fora, mas que a luz era uma cortina linda que nos protege da escuridão que mora lá. Tudo era um paradoxo. E o maior de todos os paradoxos, o que Lucy mais gostava, era o de nada ser, na verdade, um paradoxo.

Certa vez, andando pelas ruas, viu num beco um punhado de crianças rindo de um filhotinho de vira-lata todo tosado, exceto a cabeça que continuava bem peludinha como sempre fora, provavelmente. Ela então tirou toda sua roupa, exceto sua touca, e sentou-se do lado do cãozinho. Daí os adultos juntaram-se as crianças, mas não estavam mais rindo.

De lá pra cá, vinha e ia, mas voltava sempre para o mesmo ponto: o alto de uma alva colina, para ali se apresentar a noite, ouvir sua música e dançar... E dançava a noite inteira sobre os pés da existência. Quando cantava percebia que as palavras traçavam ritmos, ecoavam no infinito e modelavam o balé cósmico. Era impossível falar sem sentido, dizia. Sabia, quase sem perceber, que nada que existia tinha explicação fora de si mesmo. Lucy não tinha uma para ela. Até um ser que fosse onisciente descobriria, mais tarde, não ser tão onisciente assim, pois não possuiria o poder de defini-la.  Havia só um ser capaz disso: o homem do mundo dos homens.

Lucy nunca se soube no mundo dos homens. Caminhava seminua nas paisagens que pintava. Acordava sempre dentro de seu sono. Seguia seus passos de olhos fechados, pois uma vez piscara. Conduzia sua própria nave nas viagens entre bolhas de salão. Sim, com certeza ela fazia tudo isso e muito mais. Contudo, sem nunca sair do quarto de um manicômio.

2 comentários:

  1. Queria escrever assim!
    Carlinhos, nem vou dizer nada, tô aqui acordando dentro de um sonho.
    Que coisa mais bonita...

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  2. Lindão, Carlinhos! Orgulho desse amigo que escreve com tanta sensibilidade.

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